O mundo em 2030: criatividade e solidariedade para substituir o paradigma competitivo.

Assessoria de Comunicação da Universidade de Caxias do Sul - 10/10/2017 | Editado em 27/10/2017
Reitor Evaldo Kuiava e Domenico De Masi: doação de tecnologia, visões e sentidos para fazer frente à concentração de riqueza, poder e oportunidades.

Um pacto social capaz de substituir o paradigma competitivo por uma economia de doação (de tecnologias, oportunidades, visões e sentidos) é a proposição do sociólogo italiano Domenico De Masi à humanidade perante as transformações sociais, econômicas e culturais previsíveis para daqui a 13 anos. Tendências para 2030 foram apresentadas em conferência de abertura do Simpósio Universidade do Século XXI, em setembro, no UCS Teatro.

Centralização de riqueza e diminuição do emprego, o que deixa o poder de consumo em poucas mãos, colocando em risco o próprio modelo socioeconômico. Com cada vez mais tecnologia – e, portanto, máquinas fazendo o trabalho humano – diminuindo a quantidade de postos de trabalho tradicionais. Como consequência, 50% das atividades profissionais concentradas na faixa da criatividade e da autonomia, com empregos executivos-intelectuais e operacionais dividindo a outra metade. Com mais pessoas tendo tempo livre, o desafio será saber o que fazer com ele.

As perspectivas, que têm o ano de 2030 como referência, decorrem de transições resultantes do desgaste do neoliberalismo globalizado, o que já se revela em sintomas como o aumento da desigualdade entre ricos e pobres, a degradação ambiental, a crise de emprego na Europa, as migrações em massa provenientes de áreas de conflito, o crescimento do fundamentalismo religioso e o recrudescimento do extremismo político – ilustrado emblematicamente nas eleições de setembro na Alemanha quando, pela primeira vez desde o fim da II Guerra Mundial o ideário neonazista obteve representação no Parlamento, conquistando 89 (13%) das 631 cadeiras.

Para o construtor dessas tendências, o sociólogo italiano Domenico De Masi, o exemplo germânico ilustra o fracasso dos três agentes de formação da sociedade – a família, a escola e a mídia – na sua missão de educar os mais jovens, o que aponta para outra constatação trazida pelo estudioso criador do conceito do ócio criativo: enquanto a tecnologia está fazendo seu trabalho no mundo pós-industrial, as ciências humanas têm falhado naquilo que lhes compete na construção de modelos para indivíduos e sociedade.

Novo pacto social – E é nesse ponto crítico que, segundo o teórico, se instalará uma inexorável necessidade de mudança de paradigma, promovendo a passagem do modelo econômico voltado ao mercado para um que priorize o humano, instituído a partir de um novo pacto social entre os diferentes, “capaz de redistribuir riqueza, trabalho, poder, saber, oportunidades e tutelas”, defende.

Para o professor da Universidade La Sapienza de Roma – que apresentou suas teses na Conferência Trends 2030, abrindo o Simpósio Universidade do Século XXI: Olhar o Presente, Criar o Futuro, promovido pela Área de Ciências Exatas e Engenharias, no dia 26 de setembro (mesma data em que recebeu o título de Doutor Honoris Causa da instituição), no UCS Teatro –, caberá às universidades ensinar esse novo modelo, baseado na educação humanista, uma vez que, observa o sociólogo, é nos bancos acadêmicos que estão os jovens que serão protagonistas do mundo do trabalho daqui a apenas – mas transformadores – 13 anos.


O futuro será da criatividade

Com a proposta de traçar o rumo para onde se dirige a sociedade mundial até o final da próxima década, recorte de tempo ao qual dedicou estudos realizados nos últimos seis anos na Europa, no Brasil e na China, Domenico De Masi abriu a conferência proferida na UCS estabelecendo uma premissa, embora básica, tão conhecida quanto negligenciada: “Para olhar para o futuro, é necessário conhecer o passado”.

Dessa forma, localizou historicamente a organização social humana em duas grandes fases pontuadas pela Filosofia. A primeira, por Aristóteles, ao definir, no século III A.C. que, após a invenção da escrita, da roda, da irrigação, da cidade e da escola na Mesopotâmia (atual Iraque), as condições para a vida material estavam atendidas, devendo o homem voltar-se à evolução do espírito. Isso contribuiu para direcionar a sociedade ateniense ao refinamento do pensamento, da arte, da estética e demais ciências humanas.

Sociedade industrial – Dezessete séculos depois, o inglês Francis Bacon (1561-1626) inverteu a equação, o que lhe garantiu o epíteto de fundador da ciência moderna. Engenhos como o moinho, a vela, a bússola e a pólvora, somadas à riqueza que chegava das colônias a partir das Grandes Navegações indicavam de que a tecnologia impulsionaria a evolução do homem. Era a vez do espírito dar novamente espaço às máquinas. Estava preparado o movimento que culminaria na Revolução Industrial, iniciada em meados do século XVIII, e no liberalismo – e, 200 anos depois, na sua repaginação: o neoliberalismo.

Instalada a Sociedade Industrial (1750-1950) o mundo viu crescer, no período, sua população de 80 milhões para 4 bilhões, e a expectativa de vida de 40 para 70 anos, consagrando o progresso pela tecnologia. Mesmo veio que, com a Revolução Digital, viria a consolidar a sociedade pós-industrial, no final do século XX – e que hoje coloca em risco seus fundamentos, devido à capacidade de geração de bens sem a correspondente geração de empregos.

Sociedade digital – Assim, chegamos à atualidade com três estratos profissionais divididos na mesma proporção nos países desenvolvidos: o físico-operacional, que diminui, é transferido ao Terceiro Mundo ou confiado aos imigrantes; o executivo-intelectual, que vai se estendendo a todos os setores; e o criativo que, influenciado pela cultura digital, vinculado à motivação, desprendido das estruturas convencionais e inseparável do modo de vida e da rotina do indivíduo, reformula a relação do homem com o trabalho, com a sociedade, com o mundo e consigo mesmo.

É a partir da observação da contemporaneidade fortemente definida pelas tecnologias digitais que De Masi traça as tendências para os próximos anos em dez áreas, com as perspectivas e limitações, oportunidades e ameaças, perdas e ganhos que o contexto produz. E é sobre a abordagem da criatividade que o sociólogo propõe o pacto social capaz de (ou imprescindível para) fundar uma nova sociedade, mais humana e, portanto, mais autônoma, solidária e livre.


2030 em dez áreas

Resumidamente, algumas das tendências para 2030, em dez áreas, conforme descrição de Domenico De Masi:

– Na Demografia – As pessoas viverão mais e o mundo terá 8 bilhões de habitantes. “Serão 1 bilhão a mais de bocas para alimentar, mas também 1 bilhão de cérebros a mais para criar soluções”.

– Na Ecologia – Desde já as crises ambientais e a desigualdade social são os maiores desafios em todo o mundo. É necessário recuar imediatamente os níveis de consumo, pois o uso de recursos naturais já supera a capacidade de reposição do planeta.

– Na Tecnologia – A Engenharia Genética vencerá muitas doenças; a Inteligência Artificial substituirá muito trabalho intelectual; a nanotecnologia vai relacionar equipamentos entre si e eles conosco. Carnes utilizadas como alimentos poderão ser produzidos a partir de células. Já as sementes estarão nas mãos de apenas duas grandes companhias.

– Ubiquidade – Com as tecnologias digitais será impossível se isolar. Os nativos digitais surgem como novos sujeitos sociais, sem fronteiras, que não distinguem patrimônio próprio e alheio e não se atrelam ao trabalho formal.

– Economia – A concentração de riqueza aumenta na medida em que cresce a cota do PIB destinada a remunerar o capital financeiro e diminui aquela que remunera o trabalho. Se isso continuar, alerta De Masi, serão catastróficas as consequências no equilíbrio econômico, ecológico e social.

– Trabalho – Nanotecnologia e robótica levarão a uma perda consistente de postos de trabalho, que não serão repostos. Nos países desenvolvidos, 25% dos empregados serão operacionais; 25% administrativos (tarefas executivas-intelectuais); e 50% realizarão atividades criativas.

– Lazer – Para o sociólogo, “todos são capazes de trabalhar, mas poucos sabem viver o tempo livre”. Com isso, “da mesma forma como hoje nos preparamos para o trabalho, será imprescindível a preparação para o tempo livre, para evitar o tédio e a depressão e para haver crescimento intelectual”, defende.

– Ética e Estética – O mundo será mais rico, mas continuará desigual. A vantagem competitiva dependerá da confiabilidade das pessoas e da qualidade e da estética dos produtos, além de sua performance, superando as exigências de quem compra.

– Cultura – A invasão das tecnologias não vai suplantar a criatividade humana. O modelo americano será ameaçado pelo chinês. A produção do saber será feita por muitos e transmitida para muitos. Criatividade, empatia e coragem serão as habilidades mais desejadas no trabalho.

– Androginia – As mulheres serão maioria nas universidades e no mercado de trabalho, estando no centro do sistema social e com mais gerenciamento de poder. Valores femininos (estética, subjetividade, emotividade, flexibilidade) serão absorvidos pelos homens, prevalecendo a fluidez sexual, a pansexualidade e a androginia nos estilos de vida.

Distribuições são necessárias contra autoesgotamento do sistema

Para “ir contra o que foi provocado pelo neoliberalismo” – especialmente a concentração de riqueza, que pode colapsar o próprio sistema, e o esgotamento de recursos pela devastação ambiental, que tende a inviabilizá-lo –, Domenico De Masi alerta para a necessidade de ser firmado “um novo pacto social, entre homens e mulheres, jovens e idosos, autóctones e imigrantes, ricos e pobres, empregados e desempregados”.

A proposta, especificou o estudioso, é de mudança da lógica econômica da competitividade (“Palavra mais pronunciada nas faculdades de Economia e Administração atualmente”, pontuou) para a da solidariedade – caracterizada pela doação, desde tecnologias obsoletas e opções de trabalho para aqueles que nada possuem, até de recursos e virtudes conceituais, como a doação de sentido (de coisas, culturas e significados), de ócio criativo, de indignação, de visões, de felicidade e da ‘loucura’. Estas o sociólogo ilustrou com citações de grandes pensadores mundiais:

– Doação de ócio criativo: “Aquele que é mestre na arte de viver faz pouca distinção entre seu trabalho e seu tempo livre(…) Almeja simplesmente a excelência em qualquer coisa que faça” (provérbio Zen)

– Doação da indignação: “Eles finalmente conquistaram a virtude implacável de reconhecer a idiotice no início e não poder mais tolerá-la” (Flaubert)

– Doação das visões: “Devo estudar a política e a guerra de modo que meus filhos tenham a possibilidade de estudar a matemática e a filosofia, a navegação, o comércio e a agricultura; para poder fornecer a seus filhos a possibilidade de estudar a poesia, a música e a porcelana” (John Adams)

– Doação da felicidade: “Felicíssimo é o homem que fez feliz o maior número de outros homens. Se escolhermos na vida a posição na qual podemos melhor trabalhar para a humanidade, nenhum peso pode nos afligir, porque os sacrifícios serão em benefício de todos” (Karl Marx)

– Doação da loucura: “Em cada um de nós temos um grão de loucura, sem a qual seria imprudente viver” (Garcia Lorca)


Formação humanista é tarefa das universidades

No entendimento de De Masi, cabe às universidades – onde os aspectos humanos do conhecimento, além dos tecnológicos, devem ser igualmente contemplados –, instruir a sociedade pós-industrial para o novo pacto social e para a economia da solidariedade e da doação.

Para tanto, propõe seu conceito mais conhecido, o do ócio criativo, pelo qual se desfaz a distinção entre trabalho e tempo livre ao se estabelecer que todas as experiências de vida podem ser enriquecedoras e produtivas, desde que impregnadas de uma visão voltada à criatividade. “Com cada vez mais máquinas fazendo o trabalho humano haverá necessidade de redistribuir riquezas e oportunidades, e também muito mais tempo livre”, observou o professor, para, tomando tal constatação como ponto de inflexão à mudança, sugerir uma perspectiva ainda utópica, certamente idealista, mas reconhecidamente potencial: “Podemos refazer a sociedade grega, não tendo escravos como eles tinham, mas usando a tecnologia em favor da humanidade, de maneira que todos tenham a chance de ser mestres na arte de viver”.

 

O menestrel do ócio criativo

Reconhecido mundialmente, Domenico De Masi tornou-se popular no Brasil a partir do conceito do ‘ócio criativo’ – cujo livro recebeu uma edição nacional em 2001, pela editora Sextante –, que contribuiu para reformular as abordagens sobre o trabalho no novo século ao demonstrar como a satisfação pessoal no ambiente profissional estimula o processo criativo, permitindo o desenvolvimento de novos conhecimentos e riquezas.

Docente desde 1961 e hoje professor de Sociologia do Trabalho na Universidade de Roma La Sapienza (uma das mais antigas, com 714 anos de existência, e das maiores universidades do mundo, com 150 mil alunos), o pesquisador dedica-se a estudar as transformações contemporâneas do mundo do trabalho a partir do avanço tecnológico, levando em conta o contexto da sociedade pós-industrial.

De Masi conta com expressiva produção intelectual. Dentre suas obras destacam-se Desenvolvimento Sem Trabalho (Editora Esfera, 1999), A Emoção e a Regra: Os grupos criativos na Europa de 1850 a 1950 (José Olympio, 1999) – ambas os primeiros de um total de 12 títulos lançados no Brasil –, e O Futuro Chegou (Casa da Palavra, 2014), além de O Ócio Criativo. No livro mais recente publicado no país Alfabeto da Sociedade Desorientada (Companhia das Letras, 2017) o sociólogo discorre, a partir de 26 palavras transformadas em verbetes explicativos, sobre aspectos fundamentais da sociedade atual.

Texto: Ariel Rossi Griffante e Fotos: Claudia Velho